Sinopse da Grande Rio para o Carnaval 2024

Texto explicativo do enredo (“sinopse”):
NOSSO DESTINO É SER ONÇA
Tu me convoca e eu venho em todas as pelagens, venho na pelagem de estrela, Suaçurana, eu venho. Venho na pelagem de onça-pintada, na pelagem de onça-branca, na pelagem de onça-parda, na pelagem de onça-preta. Venho, Jaguaretê, eu venho. Acanjaruna, eu venho. Ianovare, eu venho. Jaguapinima, eu venho. Ñanguarichã, eu venho. Nigucié-do-senjo, eu venho. Pacová-Sororoca, eu venho. Mingoê-do-sengue, eu venho. Jagoareté-apiaba, eu venho. Onça Tigre, eu venho. Canguçuzinho-do-campo, eu venho. Maracajá, eu venho. Jagoacucu, eu venho. Jaguatyrica, eu venho. Jaguapitangussu, eu venho. Iaguar, iauaretê, eu venho. Tipai uu, eu venho.
Venho e te dou o que é teu por direito, tua roupa de onça.
Micheliny Verunschk – “O som do rugido da onça”
O primeiro rugido do mundo
Rugem, enfim, os tambores!
Assim contou o valente tupinambá: no princípio, a escuridão pintava os talvezes – asas de morcegos ancestrais, sombras de corujas primitivas. Caos. Quem reinava, envolto em mistério, era o Velho, aquele que segurava um cajado e caminhava, solitário, sobre o céu. Sábio. Bebeu o néctar no bico de um colibri. O Velho criou os homens e era adorado por eles, mas aos poucos percebeu a terrível ingratidão: desiludido com a própria criação, destruiu o que havia esboçado em uma chuva devastadora de fogo. Para apagar o fogo, criou o trovão, Tupã, que orquestrou um aguaceiro. Depois do fogo e da água, o mundo adquiriu cicatrizes – mares, grotas, cordilheiras. Nesse tempo, onde tudo era noite, a humanidade renasceu. Povoando a terra-sem-mal, os descendentes da primeira mulher e do único sobrevivente do dilúvio, o primeiro dos sábios pajés, cresceram e se multiplicaram. E aprenderam com Maíra a dominar o fogo – herói civilizador. E aprenderam com a vida a respeitar a onça: espírito maior, sonho e constelonções.
A terceira humanidade
Mas não há criação sem conflito e toda saga tem sua disputa: o avesso de Maíra, Sumé, detinha muitos poderes – entre eles, o de se transformar em onça. Um não existia sem o outro. Os filhos de ambos correram matas, enfrentando assombrações! Poxi, parente de Maíra, foi morar no céu e virou Cuaraci, senhor do cocar de fogo – a origem do Sol, que iluminou as trevas. Jaci, um dos filhos do enigmático Andejo, virou a Lua, depois de derrotar uma aldeia de jaguares, parentes de Sumé. Maíra e Sumé, opostos complementares, são os pais do trabalho e da guerra. Um novo dilúvio consumiu o mundo, postas as desavenças. Brotou, então, a terceira humanidade! Maíra, transmutado em curumim, reensinou o homem a cultivar o solo – da luta diária pela comida. Sumé, destemido caraíba, saltou oceanos e sangrou o firmamento, misturando-se ao Sete-Estrelo. Ruge, voraz, no céu, perseguindo eternamente a Lua, a fim de vingar seus parentes. Por isso é preciso comer o inimigo: devorar é tornar-se outro. Vingonça. Vingar é sobreviver. Incisões no couro terrestre. Devorar é seguir adiante.
As visões dos homens-onças
Fumaça e cuias sagradas, xuatês e maracás. Visões trançadas em palhas ou incrustadas de jade. Os rios, veias deste imenso corpo, levam e tragam memórias. Tudo, enfim, religado – bocas de onças-carrancas, navegando… gargantas! Nas brasas do xamanismo, o jaguar era cultuado em altares e cachimbos. Incas, maias e astecas ergueram templos ao seu louvor, coração-caverna, girar celeste. Pelos vales espoliados, os povos originários perpetuavam narrativas de onças e homens em transe: a ganância e a ignorância do invasor não conseguiam traduzir o que ensinavam os pajés. Tentativa em vão, o apagar das pegadas. Os ritos permanecem vivos nos cantos e mitos dos povos Araweté, Asurini, Kamayurá, Parakanã, Wari’, Guajajara, Juruna, Xipaia, Mawé, Bororo, Apinajé, Kayapó, Ofayé, Pankararu, Baniwa, Apalai, Yawalapiti, Pataxó, Arara, Bacaeri, Tukano, Guarani Kaiowá, entre outros, tantos, bravos!, cada um com a sua cosmovisão e os seus pensamentos mágicos. Urucum e jenipapo. “Onça sabe quem mecê é”: no Brasil, terra indígena, bulha é pintura e máscara. Onça Grande é mãe e pai.
Pintas, pontos e ponteios: reinados
O tempo que pinta as pedras retorce os mitos em causos, tramas a pé celebradas, vivas feito cachoeiras. Onças se fazem memórias e viram histórias sortidas, cordelista e pescador, atravessando tudo, na gira, no cruzo, palavra (en)cantada: ponto de caboclo, ponta de flecha, ponta de dente, ponteio caipira. Encantarias! Tudo se funde e confunde nas troças do versador. Vem onça-maneta, onça-cabocla, onça-da-mão-torta, onça-pé-de-boi, onça-de-bode, onça-borges, onça-mijadeira. Onceiro vira onça e se apaixona, na sanha rosiana do sertão. O escudo do manto do Rapaz-do-Cavalo-Branco! Caetana, Castanha, Onça-Loba que amamentou o herdeiro do trono do Sol, o Quinto Império da Pedra do Reino. Onças aladas, colares de cobra coral. Não as onças sacrificadas dos romances de cavaleiros, mas onças que rasgam o peito dos ditos assinalados. O Circo da Onça Malhada, na rua: onça que ensina e cura, transfigura, onças que somos nós!
O nosso destino é ser onça
Quem não brincou de onça-pintada, ao som e ao sabor das toadas? Quem não foi tupinicopolitano, naquele amanhecer rugindo? E quem não se deixou morder pela prosa dentada, indócil, duma Rosa antropofágica? A folia é antena e recado e fareja o que está na trilha. Os destemores, as alegrias. Reantropofagias. Bafio de fera! Hoje, artistas recriam a Terra e fazem da onça o estandarte. Lambe, demarcação: símbolo do que virá, para devorar as ignorâncias. Vencendo demandas! Recontando a história, bafejando saberes. Onças-entidades que arranham as lisuras do presente. Contra a colonialidade que aprisiona, na jugular do atraso. Em defesa dum futuro ancestral, múltiplo e diverso. Pajé-Onça que hackeia, brabo, a história da arte: denuncia o roubo e celebra a liberdade! Para que a floresta brote do asfalto e do vidro e aço e ferro e fuligem – as novas incisões, Felinas. Para que o “ser selvagem” seja redesenhado, no samba que acende a alma. Onças travestis guerreiras, panteronas, onças que redefinem os mantos tupinambás, onças que devoram a morte e fulguram feito estrelas. Onças da diferonça! Nos seixos da eternidade.
Eclipse!
Batemos os cajados no solo para adiar o fim do mundo. (R)Evolução.
Enquanto ela, a Onça, não comer a Lua.
Abrindo os caminhos
sem medo do tombo.
Nasci do encontro de luta
entre a aldeia e o quilombo.
Oxóssi Karajá – “Sete Flechas”
Narrativa em devoração e desdobramento de “Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa
Enredo, pesquisa e texto: Gabriel Haddad e Leonardo Bora – carnavalescos
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Luise Campos
Assessora de Imprensa

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