Sinopse enredo Paraíso do Tuiuti
CUNHATÃ CHAMA CURUMIM QUE EU VOU CONTAR…
Era uma vez um alemão atrevido chamado Hans Staden que se lançou navegador no afã de ir às Índias Orientais para suprir os anseios mercenários pulsantes dentro de si. Naqueles tempos, a velha Europa se deixava encantar pelas histórias das riquezas cercadas de perigos que as terras não cristãs, tão exóticas quanto distantes, possuíam.
Do ovo de Colombo já havia sido posto às claras um Novo Mundo: uma América novinha e descoberta excitava as fantasias do Velho Continente. Sedutora terra virgem, rica. Quimera misteriosa. Diante de tantos auríferos clamores, Hans Staden ouviu o canto da sereia que ecoava pelos mares do outro lado do Atlântico. Animado por não existir pecado do lado de baixo do Equador mudou a rota de seus planos e rumou ao afortunado sonho do El Dourado sul-americano.
De fronte às revoltosas intempéries marinhas, navegar não seria tão preciso assim. Aportou na Capitania de Pernambuco, onde o governador Duarte Coelho passava por um aperto lascado com os ataques de nativos furibundos da vida. Nosso indomável Leão do Norte mostrava suas presas afiadas à tentativa de colonização. Uma natureza paradisíaca e de clima infernal se abriu aos olhos dos navegadores e degredados. Naquele Brasil antigo, pisava, pela primeira vez, Hans Staden von Homberg.
Mas, seria sua segunda jornada pelas bandas de cá, em uma expedição espanhola ao Rio da Prata, que mudaria a sorte de nosso intrépido aventureiro. Se for verdade que há males que vem para o bem, a sorte vitimou Hans Staden com um golpe surpreendente que o transformou numa verdadeira lenda.
Durante sua estadia no Brasil, quando servia na artilharia de um forte português, no litoral paulista, fora cercado por índios Tupinambás, enquanto caçava. Pois é; o caçador virou a caça e se achou perdido ao ser encurralado pelos índios papões, que mordiam seus próprios braços para sinalizar ao prisioneiro o seu apetitoso destino.
Na aldeia, os selvagens se alvoroçaram quando viram sua comida chegar pulando amarrada. Levado como prêmio para a aldeia, Hans Staden ganhou um dono e uma família para chamar de sua, a qual deveria servir de bicho doméstico até o dia em que o fizessem farnel. De nada adiantaram seus esforços para provar que ele não era um dos portugueses que eles tanto desejavam ver no espeto. Enfim, se corresse o índio pegava e se ficasse o índio comia. Estava frito, literalmente.
Mas, afinal, os índios tinham fome de quê?
Eles não queriam só comida. Queriam vingança inteira e não pela metade. Honrar seus irmãos de taba, vencidos pelos inimigos Tupiniquins, Goitacás, Carajás, Maracajás ou Portugueses. O rebola-queixo canibalesco era um social ajuste de contas apoiado na lei do “olho por olho e dente por dente”, vigente entre os ‘selvagens’, daquele passado. Um ritual cerimonialístico protocolar levado a sério, no qual a comida bradava o orgulho de já ter comido da carne de seus algozes e jurava vingança por parte dos seus. E do outro lado, por sua vez, os comedores vangloriavam sua superioridade à bordunhadas e saciavam-se de justiça assada ou cozida. Tudo muito legítimo e aceitável entre eles.
Todo dia era dia de índio no que restava de existência a Hans Staden. Enquanto era cevado para aumentar sua suculência, presenciou vários banquetes de gente e compartilhou do cotidiano dos Tupinambás. Observou seus modos, as crenças em seus deuses naturais, o profundo respeito aos cunhambebes, pajés e aos maracás que julgavam serem mágicos. Bailou com eles como se bailava na tribo, entre cantorias e rezas. Viu-os encher os potes de cauim em grandes bebedeiras que os faziam, por muitas vezes, entrar em transes alucinógenos e verem o diabo solto pelas noites. Aqueceu-se nas fogueiras que flamejavam na escuridão noturna para espantar as criaturas notívagas até o sol voltar a iluminar o teto do mundo.
Hans Staden também foi levado a participar de vários programas de índio com os Tupinambás. Nas caçadas pela floresta, conheceu animais de terra e ar, insetos, plantas e frutos. Chegou até a acreditar ter visto um tigre que, na verdade, era uma onça. Assombrou-se com a destreza indígena nas pescas, com flechas ponteadas a dentes de tubarão e com a captura dos peixes pelas próprias mãos dos nativos.
Após nove meses sobrevividos nesse intercâmbio cultural forçado, a divina providência se fez piedosa, num navio corsário francês que proporcionou sua fuga.
Heroicamente, voltou ao velho continente e, como prova de que o que é do homem o índio não come, publicou suas peripécias em um livro mítico. Um best-seller em seu tempo, traduzido para vários idiomas. Um sucesso sem precedentes que fez a imaginação europeia se banquetear na selva brasileira idealizada em sua curiosidade faminta. Ganhou até uma exótica versão pirateada, na qual os índios eram retratados como árabes! Seu livro atravessou o tempo como flecha lançada em combate para que, finalmente, Hans Staden fosse comido… Modernistas brasileiros comeram-no em seu Manifesto Antropófago. Monteiro Lobato deglutiu-o, ao traduzi-lo para Dona Benta. Cândido Portinari devorou-o em desenhos. O Cinema Novo mastigou-o em Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira dos Santos…
Hans Staden provou da sinceridade dos sentimentos humanos em sua forma mais crua. Uma naturalidade vista como selvageria pelos olhos civilizados e que nos encanta e espanta até os dias de hoje. Mas, que seduz nossa vocação libertária. No fundo, por debaixo dos panos, somos todos nativos desse paraíso sem pecado e sem juízo. E, se Deus quiser, um dia eu também quero ser índio!
Jack Vasconcelos
Carnavalesco
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes: imaginário Mundo Novo Volume 1. Rio de Janeiro: Odebrecht, 1994.
LOBATO, Monteiro. Aventuras de Hans Staden. São Paulo: Brasiliense, 1969.
LÖFGREN, Alberto (tradução). Duas Viagens ao Brasil – Hans Staden. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2000.
PARIS, Mary Lou; OHTAKE, Ricardo. Portinari Devora Hans Staden. São Paulo: Terceiro Nome, 1997.
RIBEIRO, Darcy; ARAÚJO, Carlos de. A Fundação do Brasil: testemunhos 1500-1700. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.
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